Diante da enxurrada de ameaças de negacionistas e antivacinas a colegas de trabalho, um servidor da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) decidiu construir um muro no entorno da própria casa, em Brasília. Apesar de morar em um condomínio fechado — com serviço de segurança 24 horas —, ele acredita que assim poderá reforçar sua proteção.
"Aumentou a sensação de insegurança", afirma o profissional concursado, que há 15 anos faz parte da equipe da autarquia responsável por regulamentar e fiscalizar no Brasil a produção e o consumo de medicamentos e vacinas.
O clima de tensão na agência se arrasta desde o início da pandemia, quando iniciou-se uma série de ataques públicos contra a atuação das equipes de vigilância sanitária no combate à covid-19. Investidas que partiram, sobretudo, do presidente Jair Bolsonaro (PL) e de seus apoiadores.
A onda mais recente surgiu após a Anvisa liberar o uso da vacina da Pfizer contra covid-19 para crianças com idades entre 5 e 11 anos. A decisão despertou a fúria de Bolsonaro, que em uma transmissão ao vivo na internet, em 16 de dezembro de 2021, cobrou a divulgação dos nomes dos técnicos responsáveis pela autorização. Na mesma noite, ele insinuou haver interesses escusos no trabalho dos profissionais.
Em entrevista ao TAB sob condição de anonimato, o servidor conta que esse tipo de assédio tem afligido a muitos técnicos, afetados inclusive em sua vida pessoal. "Há até familiares que, quando você vê, estão postando no Facebook coisas a favor de Bolsonaro, querendo divulgar seus dados", conta o servidor. "Muitos colegas confessam que esse estímulo — até em nível de possível violência — mexeu com todo mundo."
No início de 2022, fiscais da Anvisa foram hostilizados no porto de Santos enquanto trabalhavam. De acordo com a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa), "um grupo entoava um coro com palavras de baixo calão em relação à Anvisa, o que certamente tem relação com o clima de animosidade incentivado por algumas autoridades". O motivo da represália teria sido a recomendação de suspensão definitiva da temporada de cruzeiros no Brasil, anunciada em 12 de janeiro.
Acabo de ver dois vídeos no terminal de passageiros Concais,em Santos.Uma loucura! Um amontoado de gente xingando ,veja se pode,a Anvisa. pic.twitter.com/sQBqeo3lEf
— Marcus santistax2 (@MarcusAurelioC8) January 3, 2022
Amigos e rivais
"Se o Senhor não possui tais informações ou indícios [sobre corrupção na Anvisa], exerça a grandeza que o seu cargo demanda e, pelo Deus que o senhor tanto cita, se retrate." A frase, recebida com alívio por muitos servidores da Anvisa, foi escrita pelo diretor-presidente da agência, o médico Antonio Barra Torres, em resposta às acusações do presidente Bolsonaro. A carta-resposta foi divulgada em 8 de janeiro.
Tão logo veio a público, naquele sábado à noite, a nota de Barra Torres foi compartilhada massivamente em grupos de WhatsApp de funcionários da Anvisa. O tom do diretor deixou as equipes "em polvorosa", como afirma outra servidora que trabalha na agência desde 2005 e também não quis se identificar. "O pessoal, em grande maioria, está indignado com os comentários e críticas infundadas de Bolsonaro."
Antonio Barra Torres chegou à Anvisa em 2019, por indicação do próprio presidente da República, de quem era amigo. Primeiro foi diretor e, depois, passou ao posto de diretor-presidente. No início da pandemia, o contra-almirante fazia coro aos discursos do chefe de Estado que minimizavam a crise na saúde. Em março de 2020, Barra Torres participou, em Brasília, de um ato de apoio a Bolsonaro que pedia o fechamento do Congresso. Na ocasião, ele ficou sem máscara, contrariando as normas sanitárias. Durante depoimento na CPI da Covid, ele afirmou que não pretendia ter participado do ato.
A ida de Barra Torres para a Anvisa, segundo outra técnica da agência ouvida por TAB, estava associada a "uma missão clara de não aprovar o avanço da regulamentação de produtos de cannabis no país". Em 2019, a Anvisa abriu uma consulta pública para flexibilizar o plantio de Cannabis sativa para fins medicinais no Brasil, mas desde então a diretoria da agência não tomou uma decisão final sobre o tema.
No entanto, diante dos desgastes com o governo federal em relação ao enfrentamento da pandemia, Barra Torres passou a se distanciar de Bolsonaro. "O diretor-presidente da Anvisa parece ter adotado uma postura cada vez mais técnica, e de defesa da Anvisa, o que ficou bastante evidente durante sua arguição na CPI", comenta a servidora. "Parece-nos que ele quer desvincular sua imagem a do presidente da República, que está bem desgastada publicamente. Talvez por uma questão de reputação."
Ao TAB, dois dos servidores entrevistados elogiaram a postura "técnica" e "polida" do diretor. "Quando ele deu a resposta na CPI, em que fez o mea-culpa por ter ido à manifestação e não ter usado máscara, por exemplo, a gente ficou realmente feliz", comenta um deles.
Para outra funcionária, o rompimento do chefe com Bolsonaro é pessoal, mas ainda assim faz aceno para uma base bolsonarista. "No texto, ele toca em questões de religião, conservadorismo, honra e servidão à pátria como militar", pondera. Segundo ela, a percepção interna é de que o empenho e a importância técnica da agência para conter a pandemia deixaram o diretor-presidente "sem muita saída, a não ser apoiar" as equipes.
"Ele teria de ter um trabalho de retórica muito grande para encontrar brechas nas avaliações técnicas ou ligar um 'foda-se' que poderia manchar sua reputação 'ilibada'", diz. "Ele não é um idiota. Mas também não é um cara da vigilância sanitária e da saúde coletiva. Só cumpre seu papel de referendar a decisão técnica e defender a agência."
Aparentemente, as investidas de Jair Bolsonaro contra a Anvisa enfraqueceram também o apoio que ele tinha entre alguns funcionários da autarquia. "Os bolsonaristas assumidos estão mudos no grupo que mantemos, e, no início da pandemia, eles ainda tentavam defender o presidente", diz uma técnica. "Vejo outros colegas de perfil lavajatista fazendo postagens bem contundentes contra as falas de Bolsonaro, e até colegas com cargos de gestão que não faziam costumeiramente esse tipo de comentário de cunho político."
Ataques
Desde 17 de dezembro, a Univisa (Associação dos Servidores da Anvisa) registrou mais de 200 ameaças e tentativas de intimidação contra técnicos da agência. "Variam, desde as mais genéricas, jurando de morte servidores e diretores, até as mais específicas, onde funcionários e dirigentes são citados nominalmente", afirma o diretor de comunicação da entidade, Fábio Rosa.
Entre as mais agressivas até o momento, de acordo com ele, estão uma promessa de atentado à sede da Anvisa e um vídeo de uma mulher afirmando que iria até Brasília "purificar a terra onde a Anvisa está instalada, usando combustível abençoado". "As ameaças são mais um elemento da difícil conjuntura enfrentada pelos servidores da Anvisa. Elas se somam à falta de pessoal, que resulta numa sobrecarga de trabalho, além do congelamento salarial que já passa de cinco anos. É notável o impacto sobre a saúde (sobretudo mental) dos servidores", reclama o diretor da associação.
Procurada pela reportagem de TAB para comentar o tema, a assessoria de imprensa da Anvisa recusou o pedido de entrevista, justificando que no momento "não está conseguindo atender a pedidos de entrevista em razão da alta demanda interna gerada pelas análises de processos".
UOL Notícias - Sociedade

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